Alfredo Jaar, no Kindl, Berlim, fala sobre a exposição “The End of the World”, curadoria de Kathrin Becker, até 01.06.2025.
Tonight no Poetry will serve foi projetada por Alfredo Jaar, artista chileno que mora em Nova York desde os anos 1980, no Picadilly Circus, uma das esquinas mais movimentadas de Londres. Foi cuidadosamente escolhida depois da censura de “Free Palestine”, “Stop the Genocide” e outras variantes. Ele poderia ter se recusado a fazer o projeto, mas preferiu afirmar a importância de uma espécie de diplomacia poética – especialidade de quem sobreviveu a uma ditadura militar – e respondeu à situação com a frase da poeta de origem judaica Adrienne Rich: Tonight no poetry will serve. Quem sabe amanhã?
Inspirado no movimento conceitual, Jaar tem muitos trabalhos que brincam com o texto, como a famosa frase “Andere Menschen denken”, que foi traduzida para “Outras pessoas pensam”, quando ele teve sua retrospectiva no Sesc Pompeia, em 2021. Um pôster que os visitantes podiam levar para casa. Eu conheci a versão em alemão no Herbst Salon, no Maxim Gorki Theater Berlin, em 2017. A frase iluminou meu ateliê por alguns anos.
Neste momento de policrise, foi um alento especial estar presente na fala de duas horas de Jaar no Kindl, espaço privado de arte em Berlim, onde sua mais recente instalação está em cartaz. Ele falou com cuidado e sabedoria de censura, auto-censura, da ideia de terror e sublinhou a transformação energética como o principal gerador de conflitos hoje. Dedicou grande parte do tempo a defender a Palestina e os estudantes que têm sido perseguidos tanto nos Estados Unidos, como na Alemanha. Ouvir essa denúncia direta dentro de um espaço de arte em Berlim é um acontecimento histórico num momento em que artistas e o campo da arte parecem ser personas non gratas para o poder público. Alfredo Jaar sabe, como Nan Goldin também soube, que um artista pode ser maior do que um Estado. Seria contraditório fazer uma exposição sobre as operações colonialistas do extrativismo mineral, fundamental para manter os planos de energias renováveis do Norte Global, e não falar de guerra. Ele mostrou um mapa com todos os recursos minerais da Ucrânia: metais preciosos, terras raras, cobalto, titânio, gás, carvão, petróleo, apontando claramente e com muitos dados o motivo principal da disputa territorial no país.
Jaar alternava a firmeza em suas convicções políticas com histórias sobre o tempo em que morou em Berlim – quando testemunhou o êxtase coletivo com a queda do muro, ou com citações de pensadores alemães, uma estratégia de diálogo transcultural fundamental. Ganhou o público apesar do título apocalíptico da sua exposição, O Fim do Mundo. Foi ovacionado de pé.
A escolha reforça sem rodeios o foco do trabalho no extrativismo. Dez fatias dos minerais críticos mais disputados estão no meio de uma sala de dimensões gigantes, com 20 metros de altura, por 20 de largura e 20 de profundidade. O trabalho de Jaar tem 4x4x4 cm: uma justaposição radical ao espaço, embebido numa luz vermelha (sangue, alarme de emergência?). A entrada da sala tem uma estrutura de túnel, como se estivesse em reforma. É preciso passar por esse túnel revestido de lona preta para chegar à instalação, uma reprodução simbólica da entrada numa mina. A atenção à arquitetura expositiva se explica pela formação do artista em arquitetura.
O quadrado de 4x4x4 cm contém fatias de dez minerais: cobalto; terras raras; cobre; estanho; níquel; lítio; manganês; coltã; germânio, platina. Alfredo Jaar, The End of the World, Kindl I Kesselhaus, Berlin, 2025.
Cruzeiro do Sul, Cildo Meireles, 1969. Pinho e carvalho.
A primeira referência que me veio à cabeça ao ver o quadradinho de metais perdidos, mas reluzentes, foi Cruzeiro do Sul, de 1969, do Cildo Meireles, que é feito de dois pedaços de madeiras: pinho e carvalho, um mini-quadrado de 9x9x9mm. Essas duas madeiras sagradas para os tupis carregam a possibilidade de fogo (causador da vida e da morte?), se esfregadas uma na outra. Para meu deleite, Jaar citou explicitamente esse trabalho na fala, que também aponta para as constelações do Sul, invisíveis ao Hemisfério Norte. Outras obras do movimento conceitual minimalista foram reverenciadas: Merda d’artista e Socle du Monde, do Piero Manzoni e o Condensation Cube, do Hans Haacke, de 1965.
Não é a primeira vez que a mineração aparece na obra de Jaar. Na corrida pelo ouro nos anos 1980 no Brasil, mais de cem mil garimpeiros foram arriscar a sorte e a vida em Serra Pelada, no Pará. Antes que eles fossem alcançados pelas lentes de Sebastião Salgado, Alfredo Jaar fez uma série de fotografias documentais e retratos um pouco sensacionalistas, vistos de hoje: rostos de trabalhadores precarizados olhando para câmera. Ele usou os outdoors da estação de metrô Spring Street, em Nova York, para expor as imagens ao lado do valor do ouro na bolsa de valores naquele dia. Spring Street é a estação mais perto de Wall Street. Rushes (1986) conecta criticamente a corrida dos que pegam o ouro na fonte aos que lidam apenas com seu valor, números para cá, números para lá.
Rushes, Alfredo Jaar, Spring Str., Nova York, 1986.
Depois de passar por Nova York, pela Ucrânia, por Gaza e pelo Chile, Jaar chegou à Groelândia, outro pedaço de terra ameaçado dia sim, dia não por Trump. As mudanças climáticas vêm causando derretimento do gelo, o que traz cobalto para a superfície, um dos minerais críticos importantes para as baterias. No fim da palestra, um amigo comentou que só o sistema da arte tinha ficado de fora daquela análise de fim do mundo. Felizmente, encontrei no catálogo, que foi lançado logo depois da fala, relações diretas entre a corrida de minerais e a arte. O livro informa sobre a forma de participação da Rússia na última Bineal de Veneza. Com a presença cancelada desde a invasão à Ucrânia, o país emprestou seu pavilhão à Bolívia, que expôs artistas indígenas. Além de ganhar com a imagem defensora de coletivos autóctones, a Rússia ainda conseguiu fechar um acordo de exportação de lítio com a Bolívia. No Brasil, a “lubrificação” (Hans Haacke) da mineração com a arte é mais do que conhecida. A Vale é patrocinadora da grande maioria das exposições. É sabido também que a fortuna da família Moreira Salles, patrona das artes e de filmes, vem das reservas de nióbio: o Brasil tem 98,43% das reservas de nióbio conhecidas no mundo e 85% são dos Moreira Salles.[1]
Para não acabar com a sensação de que o poço é ainda mais fundo do que se pensava, Alfredo Jaar citou Brecht:
IN DARK TIMES
WILL THERE ALSO BE SINGING?
YES, THERE WILL ALSO BE SINGING.
ABOUT THE DARK TIMES.
BERTOLD BRECHT
A minha estratégia de combate é deixar essa imagem, um poema-concreto que ganhei como autógrafo, uma lembrança da potência dos encontros fortuitos para seguir imaginando futuros.
[1] Dados encontraos no texto “Quem tem medo do MST?” da artista Dora Longo Bahia, no catálogo Retomadas–Memória, Debate, Atravessamentos, São Paulo : Expressão Popular, 2025.